sexta-feira, junho 27, 2014

o ar frio que entrava pela janela

mais de uma vez ele me disse
que havia solução
que nem tudo estava perdido

mais de uma vez ele apagou a luz ao sair
me deixou na escuridão do quarto
e pôs Milles Davis para tocar

mais de uma vez ele me cobriu com o edredon
colocou a mão na minha testa
para ver se eu estava com febre

mais de uma vez ele me beijou com olhos selvagens
me chamou de vadia de louca de perdida
e deliramos juntos no deserto de nossa cama

mais de uma vez ele chorou
olhando as estrelas

mais de uma vez jurei mudar
era só uma questão de tempo

mas depois de mil e uma noites
depois de apagar a luz do quarto
ele se foi

ficaram as estrelas
ficou a noite
e o ar frio que entrava pela janela

sexta-feira, junho 20, 2014

dessas noites em que estava lavando pratos

 
arte: rafael godoy
 
o detergente faz espuma na pia
os pratos ficando limpos no escorredor
os pensamentos sujos quero um cigarro
uma música um blues o céu escuro
meus gatos escondidos em silêncio

duas taças de vinho quase cheias
os pés no chão e pálidos
uma janela uma luz acesa do outro lado

as garrafas de vinho abertas e vazias
leio os rótulos e penso num poema
um inseto esquisito vindo de outro lugar
voa em torno das garrafas vai até a luz e volta
o tempo não tem pressa meus olhos o seguem

os pratos vão ficando limpos
as panelas ficam pra depois

pego uma taça e dou um gole
acompanho o blues num inglês ruim

o inseto se vai e bebo mais
olho a noite escura os pratos brancos
alguém me espera no sofá

"estranho pensar no abandono de toda ambição"

segunda-feira, junho 16, 2014

atroz idade



desenho: rafael godoy

ratos cinzas e inquietos passeiam
nos porões de minha infância
acordo e vejo um sorriso meio pálido
e uma mulher quase velha no espelho
nas  rugas meio escondidas sob o creme
na carne que sobra sob a roupa
muitas histórias esquecidas
e várias vidas ávidas por juventude
não tem mais corpo
não tem mais volta
mas a moça de tempos atrás
diz que ainda vale a pena

terça-feira, junho 10, 2014

quero a noite

arte: rascunho para tela: rafael godoy
 
ainda que o corpo clame
e a alma não desista
sinto em mim um deserto morno
a luz que bate de manhã e me faz fechar a cortina
tenta entrar pelas frestas da outra janela
bem-te-vis gritam em desarmonia
cadê os pardais?
os projetos em cima da escrivaninha me olham
os livros que não consegui ler empilhados
e bananas apodrecendo na fruteira
ontem dormi em outra cama
e ouvi : amor, quer café ou suco?
hoje ouço os carros e as pessoas indo pro trabalho
e sei que breve estarei lá misturada a elas
as notíciasapocalípticas do brasil

as atrocidades sem medida e as tragédias
os deuses devem estar dormindo há séculos
esse sol me atordoa quero a noite
e a brisa que soprava do mar

sexta-feira, junho 06, 2014

besteiras

tem hora que fico pensando em umas coisas bestas, por exemplo:
por que uma pessoa que não se importa com ninguém grita desesperada para o motorista do outro carro quando vê que a porta dele está aberta?
por que que as pessoas, as mesmas pessoas que podem bater ou humilhar um morador de rua ou maltratar os mais humildes, quando um copo quebra,  fazem questão de embrulhar os cacos em folhas de jornais para não machucar o lixeiro?
por que essas mesmas pessoas que odeiam a ascensão da classe menos favorecida,
que discriminam o porteiro do prédio ou um professor negro colaboram, por exemplo, com alguma entidade pró- alguma coisa- beneficente?
por que pessoas que foram profundamente beneficiadas com as mudanças que houve no país fazem questão de maldizer, escracachar e odiar o país em todos os aspectos? por quê? por quê?

segunda-feira, junho 02, 2014

foi assim



entendo que poderia ser diferente mas não foi

não quero desculpas para mim ou para o que fiz

entendo que ficar em silêncio seria o melhor caminho

 que engolir todos os desatinos que me disse seria mais fácil

e ficar quieta como muitas vezes fiquei me daria mais conforto

mas não foi o que aconteceu

cuspi maribondos e lagartas

soltei todos os demônios presos na alma atravessei os rios e desertos mais gelados de mim estradas áridas e intermináveis

senti o calor do inferno bem perto e não fugi dessa vez não

então veio a noite e a solidão.

veio o vento e os sons inaudíveis do silêncio

e uma terrível sensação de paz.