sexta-feira, agosto 31, 2012

mil noites e um abismo


 arte: rafael godoy


você precisaria de mil noites pra começar a me entender
pra sentir a lua e o gosto da cerveja descendo como um rio doce na garganta

você precisaria de mil dedos pra me tocar
e talvez nem alcançasse o ponto mais primitivo do prazer

você precisaria de atravessar estradas curvas e escuras
pra saber a cor do vento e a intensidade dos pássaros noturnos 

você precisaria ficar à beira de mil abismos
pra entender que nossos abismos são os mais profundos e quase inatingíveis

você precisaria ouvir  as canções mais viscerais
e saber que um poema pode mudar sua cabeça previsível
 
você precisaria  saber que quando estamos com  amigos de verdade
podem aparecer estrelas cadentes nos olhos

cara, mas você não sabe nada
não sabe nada

terça-feira, agosto 28, 2012

na praça

 arte: rafael godoy

no caos de minha cidade às seis da tarde não tinha mais nenhum pardal. nem que eu olhasse todos os fios, todas as eiras e beiras e procurasse no meio da praça não tinha nenhum pardal e fiquei perdida olhando para aquilo tudo. passou um cara pedindo pra engraxar meus sapatos e eu estava descalça porque fazia calor demais e a primavera tinha começado. mas ele insistiu e eu disse: hoje não dá, cara! então dei umas moedas pra ele e falei que o fim de tarde estava estranhamente belo, mesmo sem os pardais. o cara me abriu um sorriso dos mais lindos que já vi, saiu rápido e trouxe algumas latas de cerveja gelada e ficamos conversando sobre a cidade e o pôr-do-sol. os pardais foram chegando um a um e ficaram ali como se entendessem nossas palavras e como se pressentissem essa possível e intensa primavera.


ps: estou republicando alguns textos porque me sinto completamente sem vontade, sem inspiração. mas acho que reler algumas coisas não faz mal. o blog não pode ficar parado senão morre aos poucos como eu estou morrendo agora. mas vai passar.

domingo, agosto 26, 2012

estranho silêncio

 arte: rafael godoy

estranho silêncio que me acompanha
quando não quero ouvir as vozes do mundo
nem saber o que nele acontece

estranho silêncio que me atormenta na noite
e me deixa navegar desgovernada desvalida
sem âncoras ou vendavais

enquanto percorro esses caminhos tristes e equivocados
alguns homens tomam cerveja no bar da esquina
e eu queria estar lá 

(republicado)

quinta-feira, agosto 23, 2012

cenas de rua



no vago tom da noite
a árvore parada e morna
com seus galhos feito mãos inúteis
assombram os que passam distraídos
o passeio é um deserto esticado
 a rua com asfalto recente geme
quando carros deslizam loucamente
com suas buzinas ensurdecedoras

do outro lado da rua
um homem fuma solitariamente
não sorri, apenas olha a fumaça que sobe
a moça passa: "tem fogo"?
nesse momento o seu corpo é uma fogueira
a moça mostra o cigarro apagado e ergue a mão
"tem fogo?"- repete
ele todo é uma fogueira
a moça sorri com o cigarro apagado
o homem arde e olha a fumaça que sobe
a moça já virou a esquina

um cão atravessa a rua
as pessoas dormem com janelas fechadas
a luz vermelha e azul do carro de polícia
a sirene que berra
um bêbado solitário conversa com a noite
uma lua pálida no céu
o homem com um cigarro aceso entre os dedos
caminha lentamente para nenhum lugar

(republicado)

terça-feira, agosto 07, 2012

beijo

                              
arte: rafael godoy

entre dentes e línguas

entre a sua boca e a minha

um rio quente de solidão

quinta-feira, agosto 02, 2012

quase romântico

sobe as escadas com a língua pra fora, descendo a calça que não dá tempo de chegar ao banheiro. abre a porta da sala e vê que ela está lá vendo tevê com uma latinha de cerveja na mão e um ar de tédio. ele não diz nada, corre e consegue despejar no lugar quase certo sua podridão animal meio líquida. depois de algum tempo, vai até a cozinha, abre a geladeira e pega mais uma latinha. 
"cê  não disse que a gente ia ter uma noite romântica hoje?"
" quer coisa mais romântica do que chegar no banheiro a tempo?"
" porra! assim não dá! cê é um grosso mesmo! eu aqui esperando  e cê  entra desse jeito!"
"eu tenho culpa? será que você não entende? cê queria o quê? que eu fizesse aqui mesmo?"
" e eu aqui, toda produzida, depilada, perfumada, calcinha nova!" desperdício! devia dar pro primeiro que passasse!"
'faz isso mesmo! assim eu posso ver meu jogo de futebol sossegado"!
"grosso! grosso!  vai te fuder!"
ela sai batendo a porta. ele olha da janela e não a vê mais.
no céu dessa noite, uma lua imensa, linda, amarela.
no jogo, o atacante do time dele perde o pênalti.